Por Pedro Canário
À medida que a arbitragem avança no Brasil como meio eficiente de resolução de conflitos, chega-se a um paradoxo: como um dos grandes atrativos dessa modalidade é o sigilo do que foi discutido e de quem discutiu, forma-se uma jurisprudência oculta que dificilmente gera precedentes. Foi o que concluíram especialistas no tema durante evento organizado pela Federação das Indústrias de São Paulo (Fiesp) na segunda-feira (28/5).
O foco da discussão foram soluções possíveis para se internacionalizar a câmara de arbitragem do Centro e da Federação das Indústrias de São Paulo (Ciesp-Fiesp). Analistas do tema são unânimes em dizer que a formação de uma jurisprudência arbitral é essencial para a internacionalização das câmaras arbitrais brasileiras. Consequentemente, o sigilo absoluto com que são tratadas as discussões arbitrais acabam sendo um obstáculo à criação dessa jurisprudência — apesar de as regras internacionais permitirem a divulgação do conteúdo das sentenças arbitrais, desde que omitidos os nomes das partes.
De acordo com o advogado António Pinto Leite, especialista em Direito Comercial e membro do Comitê Português da Câmara de Comércio Internacional, a noção de sigilo tem sido tratada de forma exagerada mundo afora. Segundo ele, isso trouxe para a arbitragem o conceito de “tesouro escondido”. “As questões mais sofisticadas do Direito, as mais importantes para o desenvolvimento mundial, são tratadas nas câmaras arbitrais, e não no Judiciário”, afirmou em palestra.
Ele explica que a contundência das decisões arbitrais se justifica na qualidade dos árbitros. A maioria deles, diz, é de juízes aposentados que chegaram ao topo de suas carreiras, ou professores com enorme experiência teórica e prática acumulada. Leite citou um estudo feito pela faculdade de Direito da Queen Mary University, na Inglaterra, para mostrar que a confidencialidade “não é uma vaca sagrada”. Conforme explicou com seu carregado sotaque de Coimbra, 62% dos consultados pela pesquisa consideraram o sigilo “muito importante”, mas poucos o consideraram imprescindível.
O sigilo e os precedentes
A professora da Faculdade de Direito da FGV Selma Lemes, uma das autoras do texto da atual Lei de Arbitragem brasileira, concorda com o colega português. Segundo ela, a única forma de se criar uma doutrina arbitral é por meio da divulgação da jurisprudência. Isso seria feito por meio da publicação do conteúdo científico e das teses discutidas nas sentenças, sempre omitindo os nomes das partes.
Selma conta que hoje a única jurisprudência arbitral com que se pode contar no Brasil é a produzida pelo Judiciário. Só que o Judiciário, diz a professora, muitas vezes demora anos até analisar, pela primeira vez, teses que chegam diariamente a câmaras arbitrais. Ela cita os efeitos jurídicos da crise econômica mundial de 2008 no mercado de debêntures como exemplo. Não se sabe se a Justiça discutiu o tema. Mas as câmaras arbitrais já o debateram diversas vezes.
Outro ponto a favor da divulgação jurisprudencial é a criação de precedentes. Só que há uma grande diferença, em relação a precedentes, entre os sistemas arbitral e judicial: os precedentes, no caso da arbitragem, não são vinculantes e nem têm caráter de embasamento da decisão. São, na verdade, referenciais doutrinários que podem ser usados tanto como base de argumentos quanto como formas de persuasão dos árbitros. A explicação é do advogado chileno Cristián Conejero Roos, conselheiro do grupo internacional de arbitragem Cuatrecasas em Madri e Paris.
Ele afirma que em ordenamentos jurídicos que seguem o sistema romano, como o brasileiro, usa-se precedentes como “regra vinculante”, que todos os envolvidos devem obedecer. “Mas na arbitragem isso não conta muito.” Só que isso não quer dizer que sua publicação seja dispensável. “O uso de precedentes dá legitimidade ao sistema e garante a previsibilidade das instituições. São ferramentas que estabelecem diálogos dinâmicos entre as câmaras arbitrais internacionais.”
Roos criticou a falta de publicação da maioria das câmaras. Segundo o advogado, na Câmara Internacional de Arbitragem (CCI), só 12% das sentenças arbitrais são publicadas, e com três anos de atraso. Dessas, 15% (o que significa cerca de 30 decisões, segundo Roos) falam em precedentes ou na aplicação de leis. Ou seja, “não há uso em casos substanciais”, resume o advogado. “A regra é sempre a lei, mas os precedentes arbitrais preenchem as lacunas. E a publicação deles cria um sistema de precedentes.”
Morte do sistema
O ministro Sidnei Beneti, do Superior Tribunal de Justiça, que participou da mesa de discussões como debatedor, mostrou preocupação com os caminhos da arbitragem. Levantou questões importantes. Uma delas foi se a publicação das sentenças arbitrais para a criação de precedentes não acarretaria a judicialização dos conflitos — o que resultaria na morte da arbitragem em seu fim máximo de evitar a Justiça.
Beneti fala por experiência. É ministro do STJ desde 2007 e juiz há mais de 40 anos. Ele explicou que a publicação pode criar demandas judiciais, principalmente no âmbito processual das arbitragens. Citou o exemplo genérico de alguém que já passou pela câmara arbitral e vê, em um caso semelhante ao seu, que a sentença foi em sentido diferente, ou que o procedimento tenha sido outro. Ele pode ajuizar uma ação pedindo que a Justiça defina o caso.
Ele saiu do evento com mais dúvidas do que respostas. Disse que ainda há muito o que se discutir a respeito do trânsito entre a arbitragem e o Judiciário. Sua pergunta ficou sem resposta. O ministro Luis Felipe Salomão, também do STJ, e presidente da comissão de reforma da Lei da Arbitragem, foi ao evento como ouvinte. Disse que é preciso, e logo, encontrar meios de se estabelecer melhor essa comunicação, pois o Judiciário já não dá conta do trabalho que tem.
Pedro Canário é repórter da revista Consultor Jurídico.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 31 de maio de 2013
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