Pelo menos duas câmaras arbitrais conseguiram liminares que impedem a Receita Federal de ter acesso a informações de julgamentos dos últimos cinco anos. As entidades foram à Justiça depois de serem notificadas sobre a abertura de processos de fiscalização. Os fiscais solicitaram os nomes das partes, valores envolvidos e até mesmo acesso aos autos das arbitragens – que, pelos contratos firmados com as câmaras, são sigilosos.
Uma das decisões beneficia o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, em São Paulo. A Receita Federal também abriu processos para fiscalizar outras três entidades, entre elas o Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) e a Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem, ambos no Rio de Janeiro.
Apenas a Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem repassou informações à Receita Federal. As fiscalizações são criticadas por advogados, árbitros e dirigentes das entidades, que interpretam a atuação do Fisco como uma “expedição” em busca de possíveis irregularidades fiscais. Eles entendem dessa forma porque, ao instaurar as fiscalizações, a Receita não especificou sobre quais companhias gostaria de obter dados.
A liminar da Câmara de Comércio Brasil-Canadá foi concedida pela 4ª Vara Federal de São Paulo, que considerou ilegal a fiscalização. Para o juiz responsável pelo caso, a ação da Receita Federal fere a Lei da Arbitragem (Lei nº 9.307, de 1996), que estabelece em seu artigo 13 que o árbitro deve agir com “discrição”.
No texto da lei, essa é a única menção à questão do sigilo. A regra, entretanto, está presente nos regimentos internos de todas as câmaras e é um dos principais atrativos desta forma de resolução de conflitos, especialmente para as empresas de capital aberto.
As decisões também impedem a Receita Federal de multar ou aplicar qualquer outro tipo de punição contra as câmaras. Para o advogado Igor Mauler Santiago, do Sacha Calmon Misabel Derzi Consultores e Advogados, as liminares estão corretas. “As câmaras não estão listadas no artigo 197 do Código Tributário Nacional (CTN), que determina quais entidades são obrigadas a passar os dados sobre terceiros a autoridades administrativas”, diz.
O artigo 197 estabelece ainda que a obrigação não se aplica a quem “esteja legalmente obrigado a observar segredo em razão de cargo, ofício, função, ministério, atividade ou profissão”. “Não existe uma lei que obrigue a entrega dos dados, mas existe outra que protege, impondo o sigilo”, afirma Santiago.
A Câmara FGV de Conciliação e Arbitragem, porém, optou por repassar os dados ao Fisco. “Como a câmara não tem uma personalidade jurídica própria, é um serviço da Fundação Getulio Vargas, não era conveniente ter auditores aqui, comprometendo o cotidiano da fundação”, diz o diretor executivo da entidade, Julian Alfonso Magalhães Chacel.
A fiscalização, segundo o diretor, não gerou problemas. Não foram registradas desistências nos processos nem queda na demanda por arbitragem. “Quando o presidente [da câmara] decidiu que deveríamos abrir os autos para a Receita, comuniquei o que estava acontecendo a cada uma das partes envolvidas nos procedimentos que seriam abertos. Não tivemos nenhuma reação contrária”, afirma Chacel.
O Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem, por sua vez, tentou obter liminar para se proteger da fiscalização da Receita. A entidade chegou a propor duas ações, que por questões processuais não foram julgadas.
Para advogados da área de arbitragem, os motivos das fiscalizações permanecem incertos. “O Fisco quis ter acesso aos processos sem apresentar nenhum indício de irregularidade”, afirma a advogada Adriana Braghetta, do L. O. Baptista, Schmidt, Valois, Miranda, Ferreira, Agel.
Segundo Carlos Alberto Carmona, do Marques Rosado, Toledo Cesar e Carmona Advogados, “foi uma verdadeira pescaria, com suspeitas genéricas de que poderia estar havendo evasão fiscal”.
Por meio de nota, a Receita Federal informou que “não comenta procedimentos de fiscalização e nem dados referentes a investigações”. Também não se manifesta sobre decisões judiciais. O Valor também procurou o Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá, que preferiu não comentar o assunto.
Juristas pretendem incluir sigilo em lei
A comissão de juristas destinada a elaborar um anteprojeto para alterar a Lei de Arbitragem (nº 9.307, de 1996) discute a possibilidade de incluir a obrigatoriedade de sigilo na legislação. O grupo, que começou a trabalhar em abril, é formado por 16 advogados e tem como presidente o ministro Luis Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O anteprojeto deve ser entregue entre outubro e novembro. Para estudar a questão do sigilo, a comissão se debruçou sobre leis de outros países. Em quatro delas, consta expressamente a questão.
O grupo também analisa a possibilidade de sujeitar a administração pública e os litígios de consumo à arbitragem. Para o ministro Luis Felipe Salomão também seria importante discutir situações que levam a eventuais conflitos de competência entre a arbitragem e o Judiciário.
Paralelamente, tramita na Câmara um projeto de lei que regulamenta as profissões de árbitro e mediador. A proposta do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP), porém, é alvo de críticas de advogados. Eles afirmam que a própria Lei da Arbitragem já regulamenta o assunto.
De acordo com o projeto, os árbitros teriam que passar por curso, ter diploma ou certificado e estar vinculado a conselho regional ou federal. Em sua justificativa, Figueiredo afirma que a lei seria necessária para “manter no Brasil elevado nível de procedimento no aspecto técnico e ético”.
Profissionais que atuam com arbitragem, entretanto, destacam que o artigo 13 da Lei de Arbitragem já trata do tema. A norma estabelece que “pode ser árbitro qualquer pessoa capaz e que tenha a confiança das partes” envolvidas no litígio.
O projeto foi rejeitado em julho pela Comissão de Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados, mas continua em tramitação e deve passar por outras duas comissões. (BM)
Fonte: Valor Econômico
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